De repente, tudo aquilo que era extremo cuidado, um bocado de medo e uma pitada de dúvidas sobre o seu filho que nasceu com uma deficiência e milhões de ‘não-me-toques’ começa a se esvair porque ele está crescendo, resistiu às tormentas mais ‘sacolejantes’ e, agora, se prepara para tomar mais e mais posse da própria vida, do próprio caminho.
Júlia veio ainda bem menininha para esse blog, dançando balé e encantando corações. Agora, está se despedindo da infância. E, em todos os lados dessa história, Rita, a mãe, que amparou, que chorou, que brigou, que comeu o pão que o diabo não quis vê novos desafios para a filha.
Mais um texto do jeitinho que a “Semana da Criança” pede, lotado de sensações agudas, como uma montanha russa, delicado, como um carrossel, surpreendente, como uma casa de monstros e cheio de florzinhas, ensinamentos e carinhos, como a galinha pintadinha, a Peppa pig e por aí vai…
Aproveitem!!!
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Pelos meus cálculos ela foi concebida por esta época, primavera, período propício para renovações, descobertas, desabrochares de vida… O ano era 2000, prenunciado pelas profecias como o “fim do mundo” e, no entanto, o mundo dela estava apenas começando, o mundo dela ainda era o meu ventre, abrigada, protegida, sem medos… Sem dores… Sem cadeira de rodas…
“Seu bebe é uma menina mas não será como as outras, precisará de cuidados especiais por toda a vida…” Não doutor, ela será como as outras, frágil e forte como as outras, meiga e firme como as outras, insegura e valente como as outras, muito amada como as outras. E terá pais, família e amigos ao seu lado mais ainda que todas as outras.
E assim foi, e assim tem sido… Na primeira vez que a tive em meus braços sua vida já contava nove dias e na frieza daquela UTI eu tive medo de não ser capaz de cuidar daquela “frágil” criaturinha com todas as necessidades que ela viria a ter.
Eu nunca tinha ouvido falar em sonda uretral, cateter de derivação ou o que seria uma órtese soropodálica? Tutor, parapódium, muletas, curativos, cirurgias, tratamentos, sofrimento… Eu não sabia como seria lidar com a sua dor, afinal nem sabia ao certo como lidar com a minha. Mas tive que aprender na marra!
Até meu vocabulário mudou, palavras do universo médico que eu nem sonhava existir passaram a fazer parte do nosso dia a dia e então descobri que possuía forças que nem supunha e em quantidade suficiente para dividir com ela, que precisaria ainda mais do que eu.
Eu sempre disse que a carregaria em meus braços enquanto meus braços tivessem forças, mas minha cadeirantinha teimou em crescer rápido demais e meus braços enfraqueceram na mesma proporção. Hoje quase é ela quem me carrega e sua cadeira a leva onde eu não consigo mais.
Sua infância foi vivida entre parques e hospitais, festas e cirurgias, alegrias e incertezas… mas tudo passou e posso dizer que vencemos, alias, estamos vencendo pois ainda não acabou. Hoje vejo suas bonecas quase abandonadas em meio a diários, segredos e sonhos.
Muitos dias Da Criança foram planejados, esperados e comemorados (um deles até no hospital, pós-cirurgia) e agora, quando mais um se aproxima, me dou conta de que estão prestes a nem serem mais lembrados.
Dou-me conta de que a criança que eu tinha está dando lugar a uma linda adolescente. Que a vergonha de sorrir faltando um dentinho não é nada comparada à “tragédia” de uma testa cheia de espinhas. Que aturar as manhas no supermercado era mais fácil do que as atuais alternâncias da TPM (aliás, descobri que TPM significa Tenha Pena da Mãe!).
Que voltar das festas com minha roupa carimbada por suas mãozinhas sujas de brigadeiro era menos angustiante do que voltar sozinha depois de deixa-la no “níver” da colega de classe e aguardar que me ligue para ir buscá-la no final (não antes disso! Já aprendi).
Medos? Muitos! Primeiro de que nem nascesse; nasceu… Cirurgia com três horas de vida; sobreviveu… Outra com seis dias; superou… E mais outras vinte e tantas até hoje, para mostrar que medos existem, mas confiança, empenho e esperança são capazes de derrotá-los…
E baseada nesta mesma trilogia, “confiança, empenho e esperança”, é que procuro prepará-la para a vida, vencendo cada obstáculo e renascendo a cada primavera, a cada reinicio de ciclo. A cada vez que nos despedimos de uma fase encantadora de sua vida e nos deparamos com um novo e belo ser, com novos desafios, novos medos, novas alegrias. E também frustrações, já que sem contrapontos não se faz uma bela melodia. Isso ela também precisa aprender.
Hoje meus medos e anseios são outros, tenho medo de que ela não possa ir a todos os lugares que quiser, ser quem quiser, fazer tudo o que quiser, estar com quem quiser. Apenas porque sua cadeira de rodas não é bem vinda, não passa pela porta, não sobe a escadaria, não transita pelas calçadas tomadas por obstáculos e buracos.
Tenho medo de que a ignorância do preconceito ainda continue e que ela venha a sofrer com isso. Tenho medo de que o despreparo e desrespeito pelas diferenças ainda vigore no futuro.
Nada sei sobre seu futuro, mas é para ele que a preparo, para que não pareça tão assustador quando não mais puder contar comigo na retaguarda, empurrando sua cadeira e sua vida rumo a outras primaveras.